terça-feira, 9 de março de 2010

O pintor da lua




Era tão tímido que se escondia em qualquer lado, nos roupeiros, na gaveta das toalhas, no sótão, debaixo da mesa. Não gostava que estivessem sempre a falar dele, a medi-lo para ver se tinha crescido, a pesá-lo para ver se engordara, a perguntarem-lhe se gostava de desenhar só para lhe ouvirem a voz.
A professora olhava para ele, chamava-o "Vem cá!" ele dizia "Quem? Eu?!". Não queria ser ele, mesmo que soubesse tudo na ponta da língua, não queria ser ele a ter que se levantar, pegar no livro, ler, interpretar! "Quero lá saber! Esta história não é minha! Eu ouço os pássaros lá fora e o sussurro do vento nas folhas das laranjeiras, quero roubar um ovo no galinheiro e fazer uma gemada amarela, tão amarela como o sol, afogá-la em açúcar e depois derretê-la na boca devagar, devagar..."
Gostava de andar por aí, aprender com o pai os segredos da terra, com a mãe a linguagem das plantas, contar as estrelas do céu, sonhar com os peixes do mar e depois, sozinho no silêncio da tarde à sombra de uma árvore, pegar nos lápis de cor e desenhar os mundos que a sua cabeça já não era capaz de conter e saíam por todos os lados e deslizavam pela gola do casaco, penduravam-se no cachecol e chegavam mesmo a entrar-lhe sorrateiramente pelas botas.
Quando já não cabia na gaveta das toalhas, nem debaixo da mesa e mesmo os roupeiros eram pequenos para si, passou a esconder-se de outras maneiras mais elaboradas, mais engenhosas. Os seus desenhos cresceram com ele e quando na rua alguém o reconhecia e apontava "Ali vai o Pintor!" ele dizia "Eu?!"
Quando inaugurava uma exposição de pintura e lá estavam, um presidente de qualquer coisa, um vereador de uma outra e uma senhora elegante e perfumada e falavam alto, muito alto para que todos ouvissem e diziam "Meu caro amigo!!É com enorme prazer..." ele sentia medo e procurava um sótão para se esconder, mas não é muito comum existirem sótãos nas galerias de arte, ou galerias de arte em sótãos.
Às vezes não aparecia mesmo e fugia para o mar e andavam todos à sua procura e cansados de esperar, discursavam uns para os outros, batiam palmas uns para os outros e comiam croquetes e rissóis pequeninos acompanhados por um cálice de vinho do Porto também pequenino e diziam "É uma honra...", uns para os outros.
Uma noite, esgotadas as fugas e as contra fugas, abandonada a sala no silêncio dos sonhadores, no chão os guardanapos de papel murchavam em patéticos recados "me liga?" ou "tenho saudades..." e ele absorto, distraído das telas e das tintas, ali parado a pensar que as aranhas, se falassem...
-É lindo, este quadro da lua! -disse ela.
-Sim...eu também gosto muito- respondeu, acrescentando timidamente -É meu...
-Eu sei! Já li todos os seus quadros. -disse a mulher.
Ele olhou-a espantado e viu-a. Podia ser a avó, a mãe, a mulher, tanta mulher numa só pessoa, os olhos doces, o desenho das rugas na face expressiva e na sua cabeça já lhe desenhava para sempre o rosto e as alegrias de uma vida tão longa e as tristezas de quem sabe tanto e espera ainda tanto e teve tão pouco e diz não faz mal, pudesse eu ler todos os seus quadros, porque ler as letras eu não sei, éramos tantos e o bibe era curto e o lápis pequeno e a escola tão fria. As letras não sei, mas aprendi o olhar dos outros e as canções da vida, a cor da farinha e do fermento, os tabuleiros dos bolos de noiva, o cheiro da chuva e do anoitecer. E leio, leio tão bem a sua pintura, as falas que me conta em cada traço, a história da lua e da terra a secar, pudesse eu ter esse quadro ao fundo da minha cama e nunca mais teria medo ao deitar!
-Está reservado? Eu poderia comprá-lo às prestações? -perguntou ela baixinho.
Ele sentiu o coração enrolado e viu a avó, a mãe, tantas mulheres naquela mulher e deu-lhe o braço e ofereceu-lhe um Porto e dançou com ela entre a lua e o sol e mentiu-lhe como um namorado e disse, não está à venda, está reservado dentro do meu peito, deve ser do vinho não sei o que o digo nem o que faço!
E na madrugada fria e deserta embrulhou o seu quadro em papel de seda da cor do luar, com cordel de prata deu três voltas inteiras e um laço lasso, inventou um arauto e mandou-o entregar com este recado: "Peço desculpa pela confusão! Afinal o quadro foi sorteado e saiu-lhe a si porque foi a senhora mais linda que leu a minha exposição!"
Depois daquela noite, o pintor nunca mais se escondeu e sonha que o seu quadro da lua terá ainda por companhia, os pés de uma cama onde dorme uma menina, uma senhora, uma mulher, naquela mulher.